segunda-feira, janeiro 03, 2022

No Lunho com a época das chuvas diluviais, e secas prolongadas, onde a água tinha por vezes mais valor do que o ouro. A vastas áreas em que se desenrolavam as operações, estavam infetadas de doenças terríveis, e marcadas pelos ataques permanentemente por todo tipo de animais, e até os enxames de abelhas, que atacavam sem piedade quem se aproxime das suas colmeias. Não podia ser mais diferente do que das frias e lamacentas, continuas trincheiras da frente ocidental europeia. Escrever foi logo uma forma de manter viva, a esperança de voltar. Além do registo do que acontece aconteceu, se sonha ou se teme escrever era uma terapia. Também era uma forma de encontro com quem está longe. A separação prolongada e dolorosa da minha noiva, do ambiente doméstico e da terra fez da escrita uma prática de sobrevivência para mim que estava deslocado em tempos bélicos. O afastamento de casa, e a distancia em que se encontravam as famílias, pós em movimento as funções da correspondência, fazendo da carta ou do aerograma, o refúgio privilegiado do sentimento da saudade da autenticidade da mensagem para quem dela era digno. Assim o dialogo epistolar assumia um papel de relevo, para quem foi mobilizado, para um sitio da morte. A norma apontava para o envio de uma missiva diária por mim soldado sem contar com muitos populares bilhetes-postais. Para sobreviver na frente da guerra escrevia compulsivamente. Situações difíceis também praticamente não havia, foi um choque grande às vezes a ignorância é uma bênção »,acreditem. Eu com 21 anos apercebi-me  do perigo, nunca me aconteceu houveram soldados que morreram, mas não fui eu mas o perigo nunca me acontece. Sabia que estar no Lunho em Moçambique não foi um passeio no parque, mas os 21 anos deixavam aquilo transformar-se quase numa aventura. Eu era um miúdo fui criado em Aveleda Braga, depois oriundo de uma aldeia da cidade da Maia, qual era a experiência que eu tinha de selva, ou de guerra ou de qualquer coisa do gênero?    Absolutamente nenhuma. Vivia como conseguia encontrar, quando ia para uma operação, comida desidratada dobrada feijão e latas de sardinha ou de atum que me era fornecido do depósito de géneros. Quando recebia uma carta da minha noiva, era uma alegria, não havia segredos entre nós Não eram preciso laços de sangue, a unir aqueles que a vida militar juntou para sempre nós militares  distantes dos seus e da terra, fomos família uns dos outros naquelas paragens longínquas onde tivemos de aprender a matar para não morrer.
Na Metrópole as noticias que chegavam, sobre o que se passava em Moçambique, eram escassas. Os jornais afetos ao regime,  eram parcos em palavras. O que interessava ao estado era mobilizar a sociedade para a guerra  e isso acontecia elevando o soldado a herói, a alguém que vai servir a pátria.  na verdade, nenhum de nós sabia exatamente o que ia para lá fazer naquela  terra longínqua, naquele mundo desconhecido e tão diferente do sitio onde haviam nascido, e crescido até o Marcelo Caetano nos enviar  para longe. A censura militar focava-se num tema tabu, fazendo alterações de forma, a que não fossem dadas informações aos elementos inimigos. Era também a censura militar que proibia referências positivas, em ralação aos movimentos de libertação denominados terroristas, turras, bandoleiros, ou bandidos. Aliás qualquer referência à oposição, e às suas principais figuras era cortada mesmo que a prosa, não fosse elogiosa para essas figuras, porque tudo o soasse a oposição, feria a vista dos censores. 

Texto de Bernardino Peixoto Soldado Corneteiro 017516/72:       
 

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